Conviver com epilepsia ou outros distúrbios de hiperatividade neural não é fácil. Quem presencia um ente querido passar por convulsões ou episódios de agitação neurológica sabe o quanto esses momentos são assustadores e desgastantes. Muitas vezes, os tratamentos convencionais não conseguem controle completo das crises – ou trazem efeitos colaterais difíceis de tolerar. Diante dessa realidade, não é de se admirar que pacientes e familiares busquem alternativas e esperanças em novas terapias. A cannabis medicinal, com seus componentes CBD e THC, emergiu nos últimos anos como uma dessas esperanças. Mas será que combinar canabidiol (CBD) e tetra‑hidrocanabinol (THC) pode realmente trazer benefícios extras no controle das crises? Vamos explorar o que a ciência descobriu até agora de forma clara e acessível.

O que é hiperatividade neural e epilepsia?
Para entender como os derivados da cannabis podem ajudar, primeiro precisamos compreender o problema. Na epilepsia, ocorrem descargas anormais de atividade elétrica no cérebro, como se um “curto-circuito” atingisse os neurônios. Essas descargas exageradas levam às crises epilépticas, que podem se manifestar como convulsões generalizadas (com perda de consciência e movimentos descontrolados do corpo) ou episódios mais sutis, como ausências e contrações localizadas. Em termos simples, é como se o cérebro ficasse “hiperativo” de forma desordenada durante as crises. Outros distúrbios neurológicos também podem envolver hiperatividade neural – por exemplo, algumas condições psiquiátricas ou movimentos involuntários – mas a epilepsia é um caso emblemático desse fenômeno.
Viver com epilepsia significa enfrentar incertezas constantes. Crises podem acontecer a qualquer momento, afetando a segurança, a independência e a qualidade de vida do paciente. Familiares vivem em alerta, preocupados em proteger a pessoa durante uma convulsão e lidando com o impacto emocional de presenciar esses eventos. Os tratamentos tradicionais (os antiepilépticos ou anticonvulsivantes) ajudam muitos pacientes a controlar as crises. Entretanto, cerca de 30% dos casos são epilepsias refratárias, ou seja, não respondem adequadamente aos medicamentos disponíveis. Nessas situações, as pessoas continuam a ter convulsões frequentes apesar de várias tentativas terapêuticas. Além disso, os remédios podem causar efeitos adversos como sonolência excessiva, alterações de humor, problemas cognitivos, entre outros. Diante de crises persistentes e efeitos colaterais, é compreensível que pacientes busquem alternativas adicionais para encontrar alívio.
Cannabis medicinal: esperança para casos resistentes
É nesse contexto que a cannabis medicinal entrou em cena. A planta Cannabis sativa possui diversos compostos ativos, mas os dois mais conhecidos são o THC (Δ9-tetrahidrocanabinol) e o CBD (canabidiol). O THC é responsável pelo “barato” da maconha recreativa, pois atua diretamente em receptores canabinoides do cérebro causando efeitos psicoativos. Já o CBD não causa euforia e ganhou fama por seus potenciais benefícios terapêuticos sem efeito psicotrópico. Estudos em animais já indicavam há décadas que o CBD podia ter efeito anticonvulsivante (ou seja, capaz de prevenir ou reduzir convulsões), sem os efeitos indesejados associados ao THC. Por isso, inicialmente a maioria das pesquisas e tratamentos com cannabis em epilepsia focaram no CBD isolado ou em extratos ricos em CBD.
De fato, nos últimos anos, ensaios clínicos rigorosos confirmaram que o CBD ajuda a controlar crises em epilepsias graves. Por exemplo, estudos com crianças portadoras da síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut (formas severas de epilepsia infantil) mostraram que adicionar CBD reduziu significativamente a frequência de convulsões em comparação ao placebo. Com base nessas evidências, um extrato purificado de CBD tornou-se um tratamento aprovado para essas síndromes em alguns países. Esse avanço levou esperança a muitas famílias, especialmente porque o CBD, por não ser psicoativo, pode ser utilizado em crianças e tem perfil de segurança considerado bom.
Mas e o THC? Historicamente, o uso de THC puro para epilepsia foi visto com cautela. Doses altas de THC podem causar sedação intensa, alterações de percepção, ansiedade e outros efeitos colaterais – especialmente indesejados em crianças. Em geral, produtos de cannabis ricos em THC (como a maconha recreativa comum) não são adequados para tratar epilepsia, justamente por esses efeitos adversos e risco de piorar a confusão mental. Entretanto, é importante lembrar que o THC também possui propriedades medicinais: ele pode ajudar a controlar dores, espasmos musculares e náuseas, por exemplo. Além disso, alguns relatos sugeriam que uma combinação de CBD com uma pequena quantidade de THC poderia funcionar melhor do que o CBD sozinho no controle das crises. Essa ideia de que os componentes da cannabis atuam em conjunto de forma benéfica é chamada de “efeito entourage” (ou efeito comitiva). Em outras palavras, seria uma sinergia: CBD e THC potencializando um ao outro para um efeito terapêutico maior.
CBD + THC: a combinação faz diferença?
Uma pergunta natural é: combinar CBD e THC traria benefícios extras contra as crises? Até pouco tempo atrás, essa questão não estava bem esclarecida. Em 2016, um grupo de médicos em Israel observou crianças com epilepsia resistente usando um extrato de cannabis rico em CBD (mas que continha THC em quantidade menor) e notou resultados positivos, levando-os a especular que a presença do THC poderia estar contribuindo para melhorar o controle das convulsões (Tzadok et al., 2016). Contudo, faltavam evidências científicas controladas isolando esse efeito combinado. Foi então que, em 2019, um estudo inovador lançado na revista Frontiers in Pharmacology trouxe dados importantes sobre a ação sinérgica do CBD e THC em modelos de epilepsia.
Nesse estudo liderado por Éric Samarut e colaboradores, os pesquisadores utilizaram o peixe-zebra (Danio rerio) como modelo animal. Você pode estar se perguntando: por que peixes para estudar epilepsia? Acontece que os peixes-zebra são muito usados em pesquisa biomédica porque têm um sistema nervoso simplificado, transparente na fase larval, e respondem de forma previsível a substâncias – o que permite observar facilmente atividade cerebral e comportamental. Existem modelos de convulsões em peixe-zebra bem estabelecidos: por exemplo, expor os peixinhos a um químico chamado PTZ (pentilenotetrazol) provoca hiperatividade neural e convulsões similares às epilépticas. Há também linhagens geneticamente modificadas de peixe-zebra que apresentam predisposição a atividade neural exagerada (como mutantes em genes de receptores cerebrais). Assim, eles são ótimos para testar rapidamente potenciais medicamentos anticonvulsivantes em um ambiente controlado.
No experimento de Samarut et al. (2019), foram testados tanto o CBD quanto o THC separadamente nesses peixes com atividade neural exacerbada e, em seguida, ambos em combinação. Os resultados animadores mostraram que tanto o CBD quanto o THC, isoladamente, conseguiram reduzir a hiperatividade neural e comportamentos equivalentes a convulsões nos peixes. Isso já confirma que os dois compostos têm propriedades anticonvulsivantes nesse modelo. Mas o dado mais interessante veio quando os dois foram administrados juntos: a equipe testou diferentes proporções de THC:CBD (desde proporções iguais 1:1, até excesso de CBD como 1:5 e 1:10) e descobriu um efeito sinérgico marcante na proporção 1:1. Em outras palavras, quando presentes em quantidades iguais, CBD e THC se reforçaram mutuamente, trazendo um efeito maior do que a soma dos dois separados.
Por que isso importa? Porque no modelo genético mais difícil (aqueles peixes com mutação que causa hiperatividade cerebral contínua), essa sinergia permitiu que as doses necessárias de cada composto fossem menores para controlar as “crises”. Com a combinação 1:1, os pesquisadores conseguiram acalmar a atividade cerebral anormal usando concentrações de CBD e THC bem mais baixas do que seriam necessárias se cada um fosse usado sozinho. E doses mais baixas significam menor risco de efeitos colaterais e menos interferência no comportamento normal dos peixes. De fato, no estudo eles observam que, isoladamente, CBD e THC em doses altas também podem deixar o peixe meio “lento” ou alterar seu comportamento basal; mas com a combinação sinérgica, atingiu-se o efeito anticonvulsivante sem tanto impacto no comportamento normal dos animais. Essa descoberta reforça a ideia de que a combinação de canabinoides pode ser vantajosa, especialmente em casos mais complexos de hiperatividade neural, como algumas epilepsias de difícil controle.
Vale ressaltar que a proporção 1:1 (partes iguais de THC e CBD) foi a que mostrou sinergia clara no estudo. Proporções com bem mais CBD do que THC (como 1:5, 1:10) não tiveram o mesmo efeito adicional. Isso sugere que há uma dose mínima de THC necessária para aproveitar essa interação positiva – ao menos nos peixes-zebra. Em termos práticos, é como se um pouquinho de THC fizesse o CBD “trabalhar melhor”, mas apenas quando equilibrado na medida certa. Embora estudos em animais nem sempre se traduzam exatamente para humanos, esses achados fornecem uma base científica para o potencial benefício de usar CBD e THC em conjunto no manejo de condições como a epilepsia.

Evidências em pacientes: o que dizem os relatos e estudos clínicos
Os resultados promissores em peixes-zebra levam à pergunta: e em seres humanos, isso se confirma? Até o momento, ensaios clínicos controlados diretamente comparando CBD puro versus CBD+THC em epilepsia são escassos. Entretanto, há estudos observacionais e relatos clínicos que apontam na mesma direção da sinergia encontrada no laboratório.
Um levantamento publicado em 2018 por pesquisadores brasileiros analisou dados de vários estudos clínicos observacionais em epilepsia refratária, comparando pacientes que usaram extratos de cannabis ricos em CBD (com algum teor de THC) versus pacientes que usaram CBD purificado (isolado). No total, reuniram informações de 670 pacientes de diferentes relatos. Os resultados dessa meta-análise indicaram que cerca de 64% dos pacientes no geral tiveram alguma melhora na frequência das crises com produtos à base de cannabis. Mas um detalhe chamou atenção: 71% dos pacientes tratados com extrato completo (CBD+THC) relataram melhoria nas crises, contra apenas 46% dos que usaram CBD isolado. Além disso, quem utilizou o extrato de cannabis precisou, em média, de doses menores de CBD para obter resultado (porque o produto continha outros canabinoides auxiliando), enquanto os que usaram CBD puro muitas vezes necessitaram doses bem mais altas. Os perfis de efeitos colaterais também diferiram: paradoxalmente, houve menos efeitos adversos relatados com o extrato completo do que com o CBD isolado, já que doses altíssimas de CBD isolado podem causar sedação, problemas gastrointestinais etc.. Os autores sugerem que esses achados apontam para uma vantagem terapêutica dos extratos integrais da planta em comparação com o composto isolado, possivelmente graças ao efeito sinérgico entre CBD, THC e outros fitocomponentes – o já mencionado efeito entourage.
É importante destacar que, embora esses dados sejam animadores, eles vieram de estudos observacionais (ou seja, sem o rigor de um ensaio duplo-cego controlado por placebo). Ainda faltam pesquisas clínicas comparativas mais robustas para comprovar com 100% de certeza que a combinação CBD+THC é superior ao CBD sozinho em termos de controle de epilepsia. No entanto, as evidências atuais convergem: tanto no laboratório (modelos animais) quanto nas experiências de vida real de pacientes, a presença de múltiplos canabinoides parece associar-se a resultados melhores em muitos casos.
Na prática clínica atual, muitos médicos já adotam essa visão integrada. Profissionais que prescrevem cannabis medicinal costumam individualizar o tratamento conforme a resposta do paciente. Por exemplo: um paciente com epilepsia pode iniciar com óleo rico em CBD (com traços mínimos de THC); se o controle das crises for insuficiente, o médico pode ajustar a fórmula para incluir uma concentração maior de THC, talvez chegando a uma proporção próxima do 1:1, sempre monitorando a tolerância. Há também disponíveis no mercado formulários orais com proporção 1:1 de CBD:THC (utilizadas, por exemplo, no tratamento de espasticidade em esclerose múltipla) que servem de referência para essa ideia de combinação equilibrada. Tudo isso sempre feito com acompanhamento médico, já que adicionar THC exige atenção: cada paciente pode reagir de forma diferente, e fatores como idade, outras medicações em uso e condições de saúde precisam ser considerados.
Benefícios potenciais da combinação e cuidados necessários
Como vimos, a combinação de CBD + THC desponta como uma estratégia promissora para casos de hiperatividade neural como a epilepsia resistente. Resumindo os possíveis benefícios que a ciência já sugere:
- Maior eficácia anticonvulsivante: CBD e THC juntos podem controlar as crises com mais eficiência em certos casos, graças ao efeito sinérgico (1 + 1 > 2). Isso pode significar que alguns pacientes refratários aos tratamentos convencionais finalmente encontrem alívio com a cannabis medicinal combinada.
- Doses menores, menos efeitos colaterais: A sinergia permite usar doses mais baixas de cada canabinoide para obter o efeito terapêutico. Assim, reduz-se o risco de efeitos adversos. Por exemplo, ao invés de usar uma dose altíssima de CBD isolado (que pode causar sonolência ou diarreia) ou muito THC sozinho (que pode deixar a pessoa “chapada” ou ansiosa), a combinação equilibrada atinge o objetivo sem sobrecarregar o organismo.
- Benefícios adicionais à qualidade de vida: Muitos pacientes relatam, além da redução das crises, melhora no sono, no apetite e até no humor ao usar extratos completos de cannabis. Isso pode estar ligado tanto ao próprio controle das convulsões (menos crises = mais tranquilidade) quanto aos efeitos terapêuticos do THC em sintomas associados (como ansiedade e insônia que frequentemente cercam quadros neurológicos).
Por outro lado, é fundamental ter em mente os cuidados e limitações:
- Variabilidade individual: Cada pessoa pode responder de forma única. Alguns pacientes obtêm grande melhora, enquanto outros têm resultados modestos. Há também aqueles para quem o CBD isolado já funciona muito bem – acrescentar THC nesses casos pode não fazer diferença significativa e só aumentar riscos.
- Efeitos psicoativos do THC: A presença de THC, mesmo em pequenas quantidades, requer monitoramento. Algumas pessoas são mais sensíveis ao THC e podem apresentar sonolência excessiva, tontura, alteração de humor ou ansiedade. Em crianças, deve-se observar atentamente qualquer mudança de comportamento ou desempenho cognitivo. A dosagem adequada e o equilíbrio com o CBD são cruciais para minimizar esses efeitos.
- Aspectos legais e de segurança: O THC é uma substância controlada pela legislação. No Brasil, produtos de cannabis com teor significativo de THC só podem ser utilizados legalmente via prescrição médica especial (em geral, através de importação ou produtos aprovados pela Anvisa). Portanto, nunca se deve buscar por conta própria adicionar THC de fonte ilícita ao tratamento – além de ilegal, isso pode expor o paciente a produtos de procedência duvidosa. O caminho seguro é sempre através de acompanhamento médico e uso de produtos de qualidade controlada.
- Não abandonar tratamentos convencionais sem orientação: A cannabis medicinal costuma atuar como terapia adjunta (ou complementar). Raramente os médicos suspendem de imediato os antiepilépticos tradicionais ao iniciar CBD/THC. A redução de outros medicamentos, se ocorrer, é feita gradualmente e somente se as crises estiverem sob controle consistente. Portanto, o uso de CBD+THC não deve ser encarado como uma “cura milagrosa” ou substituto automático dos remédios prescritos, mas sim como parte de um plano terapêutico global personalizado.
Em resumo, a combinação de CBD e THC representa uma nova fronteira terapêutica no manejo de distúrbios de hiperatividade neural. Ao mesmo tempo em que oferece esperança de melhor controle das crises e melhoria da qualidade de vida, exige responsabilidade, acompanhamento profissional e expectativas realistas.

Quando procurar ajuda e consideração final
A mensagem mais importante é: você não está sozinho nessa jornada. A ciência está avançando, trazendo novas opções como a cannabis medicinal, mas cada caso de epilepsia ou condição neurológica deve ser avaliado individualmente. Se você ou alguém próximo enfrenta esses sintomas e se interessa por esse tipo de tratamento, converse com um médico prescritor de confiança – de preferência um especialista parceiro da Cannaceia, que conhece a terapia canabinoide. Esse profissional poderá orientar sobre as possibilidades, doses e formulações adequadas, sempre com segurança e dentro da lei.
Lembre-se: embora promissora, a cannabis medicinal não é mágica. Os melhores resultados vêm da parceria entre paciente, família e equipe médica, ajustando tratamentos e monitorando a evolução. A boa notícia é que, a cada dia, acumulamos mais conhecimento e experiência sobre como CBD e THC podem trabalhar juntos em prol do bem-estar neurológico. A esperança se renova com responsabilidade e embasamento científico.
Procure sempre orientação médica especializada antes de tomar qualquer decisão de tratamento. Afinal, este conteúdo tem caráter informativo e não substitui a avaliação individual de um profissional de saúde. Em caso de dúvidas, a equipe da Cannaceia está à disposição para auxiliar e indicar caminhos seguros.
Se as crises ainda são uma realidade na sua vida, saiba que há opções em expansão – e você não precisa perder a esperança. Converse com um médico prescritor e tire suas dúvidas com quem entende. Estamos juntos nessa busca por dias mais tranquilos e saudáveis.
Referências
- Cannabinoids in the Treatment of Epilepsy: Hard Evidence at Last? – PMC
- Frontiers | Single and Synergistic Effects of Cannabidiol and Δ-9-Tetrahydrocannabinol on Zebrafish Models of Neuro-Hyperactivity
- Frontiers | Potential Clinical Benefits of CBD-Rich Cannabis Extracts Over Purified CBD in Treatment-Resistant Epilepsy: Observational Data Meta-analysis